Direitos sociais no novo mundo do trabalho

A chegada ao Brasil, da indústria 2.0 (produção industrial em massa) foi marcada pela implantação da Usina Siderúrgica de Volta Redonda, ainda nos anos quarenta. O Governo Vargas, estabeleceu uma regulação das relações entre empregados e empregadores, assegurando um conjunto de direitos aos empregadores. E caracterizou os empregados como hipossuficientes. O que significou que nas decisões de pendências judiciais as sentenças deveriam ser mais favoráveis aos trabalhadores.

Em 1988 muitos dos direitos sociais foram incluídos na Constituição Federal, como direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, mas inteiramente orientada para os empregados, não contemplando os trabalhadores por conta própria. Esses não tem um empregador que é obrigado a cumprir os direitos estabelecidos. São eles mesmos que tem que autocumprir as obrigações, como décimo salário, férias remuneradas e outros direitos.

Mais de setenta anos depois, o mundo da produção e do trabalho sofreu grandes alterações, principalmente com a terceirização globalizada e a introdução das tecnologias digitais no processo produtivo.

A consequência principal é que as grandes unidades produtivas migraram dos países mais industrializados, para países menos desenvolvidos, onde o custo da mão-de-obra era (e ainda é) mais barato.

O Brasil embora não tenha se industrializados plenamente, mas saiu da condições de subdesenvolvido, não recebeu a transferência de grandes unidades industriais voltados para o mercado externo. Tampouco perdeu indústrias para outros países (o que só vem ocorrendo, recentemente, com as transferências industriais para a China e para o Paraguai). Tanto as indústrias como os grandes estabelecimentos comerciais e de serviços estão predominante ou totalmente voltados para o mercado interno. 

Não houve subtração de direitos dos trabalhadores formais para viabilizar a maior inserção do sistema produtivo brasileiro na globalização. Embora tivesse sido ameaçada aquela subtração, não chegou a ocorrer. E outros paises, onde nem havia os direitos ou alguns foram subtraidos, com base na precarização do trabalho ganharam mercados mundiais. 

Por outro lado, os trabalhadores por conta própria aumentaram a sua participação no conjunto do mercado de trabalho e foram contemplados com alternativas de formalização através de constituição de pessoa jurídica. A principal foi a criação da figura legal do Microempreendedor Individual - MEI, com encargos tributários e previdenciários menores do que os das empresas comuns.




A reforma trabalhista

Com as mudanças estruturais ocorridas no sistema produtivo e de trabalho, o Governo sob pressão dos empregadores quer mudar a legislação trabalhista, caracterizando-a como reforma trabalhista.

Contra a qual se opõe os trabalhadores, apoiados pelos seus sindicatos e por parte da sociedade organizada: defensora dos direitos sociais dos trabalhadores.

Com as mudanças em curso, o volume total dos trabalhadores vinculados à legislação trabalhista - a CLT - vem diminuindo progressivamente, com o aumento das outras modalidades de trabalho, principalmente as por conta própria. 

A visão ainda preponderante é que a CLT deve ser o único regime de relações de trabalho, considerando todas as demais como desvios ou tentativas de fuga à CLT. Essa visão é reforçada pelas autoridades do trabalho (Justiça do Trabalho, Ministério Público do Trabalho e Fiscalização do Trabalho) por interesses corporativos, ou seja, preservação dos seus poderes e espaço de trabalho. 

A reforma trabalhista tem como um dos principais objetivos a redução desse poder das autoridades do trabalho que atuam dentro do conceito de hipossuficiencia do empregado.

Para barrar o processo de fuga dos trabalhadores do regime da CLT, promovido e estimulado pelas empresas essas autoridades criaram uma restrição artificial à terceirização, proibindo a sua utilização para as atividades-fins da empresa.

Não é necessária uma lei para que a empresa mantenha as suas atividades centrais ("core busines"), conceito que substituiu a de atividade-fim. O problema é a interpretação das autoridades do trabalho sobre o que é a atividade-fim da empresa, gerando confusões e insegurança jurídica.

A eliminação da restrição não fará com que as empresas terceirizem a sua atividade-fim, mas ampliará a terceirização das demais atividades, que em muitos casos eram interpretadas como atividades fins e, como tal, proibidas.

A retirada da restrição fará com que se ampliem as terceirizações de atividades especializadas, não só com empresas de grande, pequeno e médio porte como com micro empresas, formada apenas pelos sócios, sem quadro de empegados. Eles poderão contratar especialistas, nas condições de pessoas jurídicas.

O número de trabalhadores com carteira assinada por empresas já é menos que a metade do total de trabalhadores, segundo os levantamentos do PNAD. O mercado formal ainda é o maior, por incluir também os estatutários e dos trabalhadores domésticos formais.

A tendência é que o trabalho por conta própria, seja o informal, como o formal sob a forma de pessoa jurídica, seja a maioria dos trabalhadores.

Pesquisas recentes conduzidas pela Fundação Perseu Abramo (o instituto de pesquisa do PT), corroborando pesquisas anteriores de Renato Meirelles (A Nova Favela Brasileira), mostram que os jovens de menor renda estão mais interessados em se desenvolver como empreendedores do que serem empregados com carteira assinada.

Eles não querem esperar que os empregadores gerem emprego. Eles mesmo geram os seus empregos.

Não estão em busca de suposta segurança de trabalho e garantia de recebimentos mensais. Estão em busca de uma ascensão social, de uma carreira fora das grandes empresas ou grandes empregadores.


Uma legislação mais abrangente


Diante dessas mudanças a reforma trabalhista não pode se ater a mudanças na CLT, mas ser mais abrangente, com uma lei geral sobre os direitos sociais dos trabalhadores.  Direitos que não serão apenas de responsabilidade dos empregadores, mas do próprio trabalhador e do Estado.

Como empregado o trabalhador só pode trabalhar 44 horas semanais, em seis dias, com um descanso de um dia. Mas por conta própria, como vem acontecendo com motoristas do Uber, pode trabalhar mais de 80 horas semanais, sem dia de descanso. Por decisão própria. Ele próprio não respeita os seus direitos sociais, para obter melhor remuneração.

Essa atitude pode ser condenada pelo Estado? A lei trabalhista pode coibir essa prática? Como e quem será punido? Com multa? Ou até prisão? 

Trabalhar fora dos limites constitucionais, pode ser criminalizado? Mesmo quando o responsável por assegurar os direitos do trabalhador é ele mesmo?

Como a lei trabalhista pode estabelecer limites aos comportamentos individuais do trabalhador? 


O rigor nas relações celetistas e a fuga a elas

Quanto maior o rigor nas relações celetistas maior será a tendência de fuga a elas, tanto do lado do empregador como do trabalhador.

A legislação pode ser mais rigorosa para conter a terceirização e a pejotização no Brasil, mas não pode impedir que a empresa industrial vá produzir na China, onde o trabalho é ainda mais barato, ou no Paraguai, muito mais próximo. 

Para conhecer os resultados efetivos dessa tendência de transferência não é preciso ir a pouco mais de 1.000 km da capital. Basta ir à 60 km para conhecer o local de uma indústria brasileira transformada em outlet, e vendendo os seus produtos "hecho en Paraguay" .

A reforma trabalhista não pode desconsiderar esse novo fenômeno. Que significa, em última instância, a redução de empregos no Brasil.

A "pejotização"

A pejotização do trabalhador é a sua configuração institucional como pessoa jurídica e não mais como pessoa física, nas relações de trabalho.

A pejotização é um dos mecanismos de terceirização, mas não se confunde com essa. A terceirização pode ser feita de uma empresa (pessoa jurídica) com outra pessoa jurídica que tem empregados, regidos pela CLT. A pejotização ocorre quando um trabalhador constitui uma firma individual, para prestar serviços ou vender produtos, fornecendo apenas o seu trabalho. 

A pejotização pode ser tanto uma forma de burla à CLT, como uma nova modalidade de prestação de trabalho. 

No primeiro caso o trabalhador trabalha apenas para uma empresa, em tempo integral, subordinado a uma chefia da empesa contratante. Há condições adicionais, como o trabalho no local da contratante, o que não seria mais uma condição obrigatória.

No segundo caso o trabalhador trabalharia autonomamente, sem  relação de subordinação, mas com compromisso de cumprimento das condições contratuais. 

Proibir ou regular?

Para evitar a burla não se pode simplesmente proibir a pejotização, que acabará ocorrendo, amparado por subterfugios, dentro das novas modalidades de organização do trabalho.

Existem dois níveis de trabalhadores pejotizados que devem ser considerados com alguma diferenciação:

  1. os profissionais liberais ou com maior nível educacional que se organizam para realizar o seu trabalho, como pessoa jurídica;
  2. os trabalhadores com menor formação educacional que podem ser induzidos pelos empregadores a se transformarem em PJs para a redução dos encargos sociais.


O que precisa ser regulado na pejotização, para assegurar ao trabalhador PJ os seus direitos sociais:


  1. execução de atividades similares a realizados na empresa contratante por trabalhadores celetistas;
  2. as horas máximas por semana, comprometidos com o contratante, em caso de contratos continuados;
  3. o prazo máximo, no caso de execução de projetos, que exijam tempo maior que o definido acima, o que deverá ser associado aos prazos do trabalho temporário;
  4. remuneração que agregue os provisões, como férias, 13º salário e outros, não podendo ser inferior ao valor do salário mínimo, com os acréscimos desses benefícios;
  5. retenção na fonte dos encargos previdenciários pertinentes;

Alguns casos 

Um médico pode atender a diversos clientes individuais,como pessoa jurídica, mas trabalhando numa clínica empresarial que busca os clientes, faz o atendimento prévio e promove a cobrança dos honorários. 

Na forma de cobrança dos honorários e no tempo de permanência na clínica, pode ocorrer a diferença entre um PJ efetivo e um empregado disfarçado de PJ:
  • se o tempo de permanência do médico for parcial, com trabalho em outras clínicas ou estabelecimentos de saúde, pode ser efetivamente caracterizado como PJ;
  • se o tempo de permanência for integral, dependerá da autonomia para a prática da atividade e da forma de cobrança:
    • se a cobrança for feita pela clínica, com repasse ao médico, poderá ser caracterizada uma relação de emprego;
    • se a cobrança for feita em nome do médico, com a clínica processando a emissão das faturas ou recibos, com a cobrança de uma taxa de administração e locação, há uma caracterização mais objetiva de um contrato de serviços e não uma relação empregatícia. 


Outro caso de terceirização com PJ, este envolvendo processos industriais é a facção, com a empresa de confecção promovendo a transformação de empregados em pessoas jurídicas, pagando parte da rescisão em máquinas e prometendo comprar a sua produção ou serviços.

A costureira passa a trabalhar em casa, recebendo o material, fazendo o trabalho de acabamento e devolvendo ao contratante a peça pronta. 

Ela não trabalha dentro da empresa contratante. Estabelece os seus proprios horários e ritmo de produção. Não tem um supervisor como seu chefe imediato. Ela é a chefe dela mesma. A sua relação com a contratante é de produção de peças acabadas. A sua produção pode ser desqualificada, redundando em não pagamento ou desconto pelas peças não aprovadas. Ou na obrigação de refazimento, sem custo adicional.

O seu trabalho não contempla as condições essenciais para ser caracterizado como uma relação empregatícia.

Como assegurar a ela os direitos sociais estabelecidos na Constituição Federal, se cabe a ela mesma cumprir as obrigações? Ela não poderá fazer trabalho noturno mesmo que assim o queira? 

Se durante o dia tem que cuidar dos filhos pequenos e prefere trabalhar à noite, quando eles dormem, será proibida? Quem irá fiscalizar? Quem irá denunciar?

Os "uberistas"

Uma nova modalidade de trabalho por conta própria emergiu em função da tecnologia. O trabalhador pode prestar serviços remunerados de transporte de pessoas, com o seu próprio automóvel, atendendo a chamadas por meio de um aplicativo em seu celular. 

Essa atividade foi viabilizada pela conjugação de três tecnologias digitais: o smartphone que abriga o aplicativo de chamada, tendo como contrapartida o smartphone do cliente, com a mesma capacidade, o próprio aplicativo de chamada, e o aplicativo - do tipo waze - que identifica e orienta o motorista em relação às rotas para chegar ao destino desejado.

No Brasil, em particular, em São Paulo, a crise econômica gerando aumento do desemprego formal, empurrou muitos trabalhadores para a atividade. Para muitos tem sido a alternativa de sobrevivência, mas com sacrifício dos direitos sociais.

Para alcançar uma receita bruta mensal da ordem de R$ 5.000,00 prometida pelo gestor do aplicativo, ele precisa dar um expediente diário de 10 a 12 horas e, algumas vezes, sem descanso semanal. Trabalha muito mais que as 44 horas semanais limitadas pela Constituição Federal, não tem remuneração adicional por "horas extras", realiza trabalho noturno e não tem garantidas férias, tampouco 13ª remuneração. 

É tipicamente uma condição de trabalho precário, não decente, mas que é assumida voluntariamente pelo próprio trabalhador. O gestor do aplicativo não o obriga a trabalhar nessas condições, mas o motorista as adota para obter uma remuneração, supostamente condigna ou desejada.


A legislação abrangente

Uma legislação abrangente teria que regular os contratos com pessoas jurídicas formadas por uma única pessoa ou sociedade de trabalho, em que todos são sócios, sem empregados.

Deveria prever a negociação entre as partes como a condição geral dos contratos, exigidas apenas algumas condições mínimas, para assegurar direitos sociais. 

A legislação teria que impor condições essenciais ou limites nas condições do contrato, como:

  • impedimento de contratação de produção que implique em jornada semanal de trabalho de 44 hora, durante 6 horas, prevendo-se um dia sem trabalho;
  • remuneração mínima por hora ou outro período de trabalho que tenha por base a remuneração de atividades similares, no regime celetista, incorporando todos os benefícios obrigatórios nesse regime. 

Outras condições poderiam ser adotadas, mas sem ter a contratação celetista como parâmetro ou paradigma. 

Ou seja, pensar fora da caixa da CLT. Tanto do ponto de vista dos empresários como dos trabalhadores. 


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