"Golpes" e golpes.

O Brasil, o B dos BRICs, um dos principais países emergentes, está envolvido numa profunda crise política, ao meio de uma crise econômica que vem empobrecendo a sua economia. O seu PIB decresceu  3,8 % em 2015 e o FMI projeta para 2016 um recuo de 3,5%, contra um crescimento dos emergentes de 4,3 %.

A crise política se caracteriza por uma disputa de poder entre os três principais partidos politicos. Desde 1986, quando ocorreu a redemocratização, superando uma ditadura militar, que ficou no poder de 1964 a 1986, esses três partidos disputam o poder.

O PSDB, um partido social-democrata de centro ficou no poder com o seu principal líder o prof Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 e 2002. A partir de 2003 o poder foi assumido pelo PT, o partido dos trabalhadores, de centro-esquerda, com a eleição de um ex-operário metalúrgico, líder sindical, Luis Inácio Lula da Silva. Tendo feito um bom governo, tanto no aspecto econômico como social, mesmo enfrentando a crise internacional de 2007-08, com elevada popularidade, elegeu a sua principal auxiliar, sem nenhuma experiência politica, Dilma Rousseff. A primeira mulher a comandar o pais

Dilma tentou encerrar a política econômica de austeridade, recomendada pelo FMI e outros organismos internacionais, caracterizada pelo tripé macroeconomico, e fez a economia brasileira regredir em 2014. Conseguiu, no entanto, manter uma taxa de desemprego baixo, a continuidade da geração de empregos, ainda que em ritmo inferior aos dos anos anteriores. Em  função de uma bem sucedida campanha de marketing, escondendo a situação real da economia, já em decadência, prometendo manter política de benefícios, tanto econômicos como sociais e acusando os adversários de romper essa política mediante ajustes prejudiciais a classe trbalhadora e aos mais pobres, caracterizado como os "que mais precisam", conseguiu se reeleger, ainda que com pequena margem sobre o seu oponente do PSDB. Foi eleita com 54 milhões de votos.

O terceiro partido, o PMDB, multiplo ou indefinido do ponto de vista ideológico, a menos de ser de centro, pendendo a favor de um lado a outro, não contra com uma liderança forte, de receptividade popular, para ter o seu candidato próprio para disputar a Presidência da República.

Mas em função do sistema eleitoral em que os congressistas são eleitos pelos Estados, que são 27, cada qual com um mínimo de 8 deputados federais, e 3 senadores, o PMBD se mantém como o principal partido do Congresso. É vital para a governabilidade e em função disso, negocia a sua participação em todos os Governos. 

Com a ascensão do PT se aliou a este e compôs a vitoriosa chapa Dilma-Temer, em 2010, que foi repetida na reeleição de 2014.

Diante de uma derrota com pequena diferença, percebida a falsidade dos dados apresentados pelo Governo em relação à situação real da economia e das promessas, o PSDB, inconformado recorreu à Justiça para cassar a chapa eleita, mas não teve êxito nas instâncias iniciais do Judiciário.

Dilma Rousseff, antes mesmo de assumir o segundo mandato, começou uma guinada na sua política fiscal, iniciando a realização dos ajustes que acusava os adversários de pretenderem fazer. Chamou para ser o Ministro da Fazenda, Joaquim Levy, um engenheiro- economista da linha monetarista e ortodoxa, então diretor de banco privado.

Apesar do apoio do PMDB o Governo não conseguiu implantar grande parte das medidas de ajuste, gerou um clima de desconfiança no mercado econômico, ampliando sucessivamente a crise econômica. 

Que se tornou grave com o crescente nível de desemprego, e sem o governo ter qualquer capacidade de reação para reversão desse processo.

Paralelamente uma vigorosa ação conjunta entre a Polícia Federal, Ministério Público e Judiciário, tendo como personagem mais visível, o Juiz de 1ª Instância Sérgio Moro, descobriu uma extensa de rede de corrupção, que foi instalada na principal empresa estatal brasileira, a Petrobras, resultando na prisão de ex-dirigentes da empresa e dos principais donos e dirigentes das maiores empresas de construção brasileira. O que nunca havia ocorrido no país.

Pelo sistema jurídico brasileiro, os congressistas, assim como os altos dignatários do Pode Executivo, tem foro privilegiado o que os livra da 1ª Instância e tem o julgamento direto pela Suprema Corte.

Mas encaminhados os processos com as apurações iniciais, a maior parte decorrente de colaborações ou delações premiadas, cerca de 40 político estão indiciados, tanto do Governo como a oposição. Entre eles o Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, um deputado do Estado do Rio de Janeiro, pelo PMDB com grande capacidade de articulação e de manobras regimentais, eleito presidente da Câmara, contrariando o Governo. A tentativa do Governo de impedir essa eleição o tornou o principal desafeto da Presidente.  Na outra ponta Eduardo Cunha, está na ponta das denúncias oferecidas pelo Ministério Público, já sendo réu em processos na Corte Suprema. E o Procurador Geral da Republica, pede que o STF o afaste da Presidência da Câmara. Mas aquele evita uma interferência no Legislativo, adotando uma posição de cautela e formação de um consenso, fora das sessões abertas. Que no Brasil, são televisionadas e acompanhadas por milhares de pessoas.

Diante desse quadro segmentos da sociedade civil, iniciaram movimentos para pedir o impeachment da Presidente. A classe média, então sempre omissa ou silenciosa, foi para às ruas em grandes multidões para pedir a saída da Presidente, recusando o apoio e participação dos partidos. O PSDB, o principal partido da oposição, fixou-se no processo judicial, o que resultaria numa eleição antecipada da Presidência, opondo-se ao processo de impeachment. Não obstante, o Governo e o PT sempre acusaram o PSDB e o candidato derrotado Aécio Neves de serem os mentores ocultos dessas manifestações. Embora esses, quando presentes tenha sido repudiados pelos manifestantes. 

Vários cidadãos - dentro do seu direito público e constitucional - ingressaram na Câmara dos Deputados com pedido de impeachment da Presidente. A maior parte foi recusada pelo Presidente da Câmara que tem o poder individual de abrir ou não um processo. Em função de desavenças com o PT e a Presidente Dilma Rousseff, Eduardo Cunha - o Presidente da Câmara dos Deputados - aceitou um dos pedidos - o melhor fundamentado, proposto por três advogados, dois dos quais renomados - e deu início ao processo, ainda no final de 2014.

O pedido contém um conjunto de denúncias, todas amplamente divulgadas pela mídia, desde os casos de corrupção, de omissão, em casos de malversação de recursos públicos, aos de improbidade administrativa e efeito nocivos sobre a economia, principalmente as chamadas "pedaladas fiscais" que foram mecanismos para maquiar as contas públicas, mantendo a impressão de que estavam em ordem e sob controle, quando a realidade estava sendo escamoteada por operações irregulares com os bancos públicos. Mas por questões formais, para evitar a judicialização do processo (isto é, ações de contestação, junto ao Judiciário) o "sabido" Presidente da Câmara, só aceitou duas denúncias:  uma "pedalada" ocorrida já em 2015, desconsiderando as dos anos anteriores - por se referirem a outro mandato - e um conjunto de decretos, com a abertura de créditos adicionais, em desacordo com as limitações estabelecidas em autorização legislativa. Mas poucos deram atenção aos detalhes. Tudo girou em torno das pedaladas e do "conjunto da obra da Presidente".

Depois de percalços iniciais de interpretações jurídicas sobre o rito do processo, e demoras em função de férias forenses e legislativas, o processo caminhou rapidamente na Câmara dos Deputados, acelerado pelo seu presidente e 17 de abril, o Plenário da Câmara aprovou a admissibilidade do processo, mediante 374 votos dos 513 deputados, encaminhando-o ao Senado Federal para julgamento final. Dentro do andamento normal do processo, sem acelerações e sem retenções, a decisão sobre o afastamento da Presidente por 180 dias deverá ocorrer ainda em maio. Com a Presidente afastada e substituída pelo seu Vice-Presidente, eleito juntamente com ela, segue o julgamento que pode decidir pelo afastamento definitivo ou pela sua absolvição. Com o que ela voltaria ao cargo podendo permanecer até o final de 2018, caso outros processos não a retirem do cargo.

Diante da ameaça de perda de mandato a Presidente e seu partido, o PT - Partido dos Trabalhadores - lançaram o seu grande mantra: tratava-se da tentativa de um golpe de Estado, um golpe contra a democracia, caracterizada pela tentativa de derrubar uma Presidente eleita legitimamente em pleito democrático, com 54 milhões de votos.

Esse golpe, embora não fosse militar, seria a tentativa da classe dominante, derrotada nas eleições populares, através de mecanismos constitucionais e parlamentares tomar o poder das classes populares. Seria uma disputa entre a burguesia e os banqueiros contra o povo e contra os trabalhadores. Realidade ou não foi a versão apregoada, com aceitação interna e externa, ou internacional.

A colocação inicial da defesa foi "impeachment é golpe". E embora do PT tenha tentado impedir todos os presidentes anteriores, não do partido, usava o caso do Paraguai, onde um presidente progressista foi derrubado pelo parlamento, num processo expedito. Criou-se a figura do golpe parlamentar, que mesmo sendo legal seria ilegítimo e atentado à democracia. Por pretender anular 54 milhões de votos populares.

Com a reação do Poder Judiciário, com decisões plenas da Corte Suprema, definindo que todo o processo estava e devia seguir todos os trâmites constitucionais e legais, a Presidente e seu partido passaram a qualificar o slogam, passando para "impeachment sem crime (de responsabilidade) é golpe". Primeiramente desconhecendo os fatos citados. Depois, com a comprovação fática da sua ocorrência, comprovado por registros oficiais, vem procurando desqualificá-los, embora reconhecendo-os e afirmando que não podem ser caracterizados como crimes de responsabilidade. E, como tal, não podem ser motivos para o impeachment. E que todas as demais alegações não constam do processo. Conseguiu do STF uma decisão de que somente as duas denúncias específicas devem ser consideradas, mas isso não impede que as manifestações contra e a favor extrapolem essas questões. 

A Presidente, pessoalmente, está absolutamente convencida de que as denúncias em questão não são crime de responsabilidade dela. Que ela não pode ser condenada por decisões de Governo, envolvendo centenas de análises e pareceres técnicos e administrativos, que consideraram os atos denunciados como legais. Não foram atos arbitrários e personalizados de flagrante atentado legal. Por isso reage com indignação e sente-se à vontade para defender o seu mandato, contra o que considera um "golpe". E manifesta isso para o público nacional, como para o internacional, obtendo a solidariedade de muitos, inclusive de autoridades.

Ademais, alega que os atos de que a acusam foram praticados por seus antecessores e também por Governadores e Prefeitos, sem que ninguém tenha sido punido. Não é fato, mas a versão é aceita como verdadeira, porque ninguém se dispõe a analisar os demais casos, em detalhe (incluindo o autor aqui, que se baseia em regras gerais).

Como ela acredita plenamente que os fatos denunciados não são crime e portanto ela não cometeu nenhum crime. E que as demais acusações não devem ser consideradas, sendo questões naturais da disputa política. O subterfúgio de usar umas "pedaladinhas", infrações leves como motivo para o seu afastamento é um "golpe". E afastá-la, depois de reeleita com 54 milhões de votos, é um golpe contra a democracia.

É uma versão consistente, em si mesma, e aceita por muitos meios, internos externos, como um golpe contra uma mulher progressista, eleita democraticamente. 

O fato é que a infração leve, ainda que pequena é caracterizada como atentado à lei orçamentária e, como tal, um crime de responsabilidade da Presidente e dá margem legal para o seu afastamento e destitiuição. O processo político agiganta o pequeno crime, por que os grandes não são espeficamente crimes de responsabilidade, ingressando em conceitos mais difusos como o da improbidade adminstrativa. 

Esse é golpe. O mesmo golpe que a história norte-americana, conhecida no mundo, foi usado pela Policia e pelo Judiciário para condenar o lendário Al Capone. 

Um "golpe de mão". Um golpe de esperteza. Mas nunca um Golpe de Estado, tampouco um golpe contra a democracia. Tudo ocorre dentro de todos os preceitos democráticos e republicanos. Ainda que por manifestações de muito mal gosto. Mas que é um desses preceitos democráticos: o direito de livre manifestação.

 









 





 






 

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